Antes que houvesse um Rei que reinasse sobre todo este mundo; antes que o teatro de Trevas e Luz se fizesse atuante, o Donn (1) estabeleceu o nosso idioma (2) e o ensinou àquele ser néscio que viria a ser Rei para sempre sobre nosso orbe. Sim, o Som é que determina os destinos das criaturas viventes de todos os mundos. Cada corda universal, tocada em canções caóticas, gera sons, e esses vibram para cristalizar as formas visíveis. Mas, depois deste desterro, das desgraças que se abateram sobre nós, habitantes dos continentes de Vústia e Lékhtia (3), o que poderíamos considerar visível?
Foi-nos ensinado que o Donn é o dispensador de todas as coisas visíveis e invisíveis. Pura falácia do Tseri (4) Vustiano! Queriam que os imundos servos que chafurdam nas lamas de Vústia se recusassem a aprender o idioma de Donn. Assim, não precisariam se importar, pois o que tinham como sobrevida era o que lhe era devido por seu dispensador. Se Donn realizasse tudo, por que precisaríamos de um Rei, e – ainda mais -, ignorante? O idioma lhe foi ensinado, e este é seu poder real: criar com suas palavras, emanadas de um pensamento investido de Realeza.
Donn nunca fora visto; pelas praças e aldeias contam-se estórias a seu respeito, sobre como semeia as ziren (5) das plantas, das quais comemos todos, vivos e mortos, e engendrou todas as criaturas visíveis. Se é um ser real, com certeza não se incomoda do que digam com respeito a ele. Mas é-nos a única referência de nossa origem jamais esclarecida. Duvida-se, inclusive, que os Tseren, que governam Vústia e Lékhtia, saibam realmente de algo. “Por certo” – dizem alguns dos vustianos – “nos fazem acreditar que sabem sobre a natureza do Donn para manterem seus impérios e nossa submissão!” Acho que eles talvez não conheçam o Donn, mas se conhecessem e nos contassem, ainda assim não entenderíamos nada do que dissessem.
Eu, Nímen, lekhtiano trazido dos Habnen (6) por meu Senhor, o Tseri de Lékhtia, investido como shperer (7) por ele mesmo, me dedicarei aqui, devotamente, a relatar os acontecimentos maiores da Guerra entre Vustianos e Lekhtianos pelo trono de Erde Bethakhes (8), que pôs em perigo de destruição nosso mundo. O Rei, que reina sobre a montanha de Rokhi (9), onde os ventos não nos permitem vê-lo em seus aposentos ou à janela, deveria ser julgado por Donn por sua inépcia em evitar a Guerra?
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O que temos contigo, ó impetuoso Jam Katem,
Tu que dormias enquanto teu Palácio conspirava
Contra a Paz e a Promessa?
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Teus inimigos se lançavam ao teu pescoço
Durante teus sarais oníricos;
E quando, embriagado nas Trevas,
Assoviavas para as rapineiras.
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Aos portões de Nissan, em vão, tentam-te acordar;
Pelos porões de Nefussi, invadem tuas fossas
As formigas e vermes, as ratazanas e áspides.
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As corujas te ditaram engodos,
Os bufões sobrevoavam por tua matriz
E o mocho vinha te anunciar o fim de teu reinado.
Agora, acaso, podeis dormir o sono dos Reis?
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Durma, honorável Jam, durma sobre a laje reta!
Que seja reto teu sono e grave teu despertar!
A Luz corrige os dignitários e os faz repousar.
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Notas:
1 Donn: Senhor, em idioma Aggiliano. Usado, especificamente, para designar o Ser Supremo que, diz-se, criou todas as coisas.
2 Idioma: nomeadamente, o idioma Aggiliano, ensinado ao Rei pelo Donn, para que operasse seu poder e dispusesse de outorga sobre o mundo.
3 Vústia e Lékhtia: esses são os dois continentes nos quais se dividia o Mundo, antagônicos entre si, em que habitam seres ora criados pelo contínuo acasalamento do Rei, ora por estrangeiros trazidos pelos Tseren. Cada um desses dois continentes é governado por um Tseri.
4 Tseri (plural Tseren ): Príncipe ou Nobre. Cada um deles é investido, desde o início dos tempos, pelo próprio Donn após a coroação do Rei (Da Gunk), ou são “semeados” no mundo junto com este último, por afinidade de estirpe. Mais à frente, veremos como os Tseren destas crônicas vieram a obter sua Tserung (Nobreza ou Principado).
5 Ziren: plural de ziri (semente).
6 Habnen: plural de Hában (céu).
7 Shperer: livreiro, escriba, notário, escriturário, cronista.
8 Erde Bethakhes: nome do Mundo de nossa história, que podemos traduzir como “Terra da Promessa”.
9 Rokhi: a montanha santa onde fica o Palácio de Jam Katem, o Rei de Erde Bethakhes; podemos traduzir essa palavra por “Vento” ou “Sopro”.
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